Ana Cachola, Daniela Agostinho, Luísa Santos

 

  Aimée Zito Lema, Silkscreen series - preparations for 13 Shots, silkscreen print on paper, 2018.  

 

O trabalho de Aimée Zito Lema (Amesterdão, 1982) tem vindo a incidir sobre a memória, o registo e a transmissão intergeracional de acontecimentos através da história material e do corpo humano. Informadas tanto conceptual quanto formalmente por estes discursos, as serigrafias que aqui se apresentam em forma de ensaio visual constituem parte da exposição individual 13 shots, a inaugurar no espaço projecto do Museu Gulbenkian em Junho deste ano, em que se ensaia uma posição crítica para com os processos que enformam a construção da memória.

O título do projecto artístico de Aimée Zito Lema, 13 Shots, é inspirado pelo conto “Mineirinho” de Clarice Lispector, que versa sobre um acontecimento que chocou a opinião pública brasileira em 1962, quando agentes policiais, transgredindo todos os quadros legais disponíveis, executaram um assassino, chamado Mineirinho, com 13 tiros. A escolha do título antecede o mais recente caso de violência policial no Brasil que custou a vida à vereadora do Rio Janeiro, Marielle Franco, socióloga feminista, negra e lésbica, crítica da actuação policial e militante dos direitos humanos. A memória recente deste caso de absoluta violência necropolítica assombra o título da exposição, que a artista tomou emprestado a Lispector para pensar sobre as imagens como dispositivos de violência. Explorando a dualidade semântica da palavra shot, que tanto pode significar tiro como plano de imagem, Zito Lema reflecte neste projecto sobre a violência muitas vezes contida nas e obliterada pelas imagens, e sobre a necessidade de aprofundar, complementar e subverter o plano da visualidade através da memória dos corpos, dos gestos, e das vozes. Afinal, as imagens exercem violência quer através do que representam, quer através do que ocultam. Por um lado, é (também) através das imagens que determinados corpos são considerados humanos e merecedores de protecção, ao passo que outros são considerados supérfluos, dispensáveis e sujeitos à violência e invisibilidade, como sugerem Judith Butler e mais recentemente Alexander G. Weheliye1. Por outro lado, por via da sua própria fenomenologia (inevitavelmente incapaz de veicular a corporeidade da vida, a não ser por via da evocação ou da ausência), as imagens muitas vezes obliteram a experiência material e a dimensão sensorial (isto é, a experiência sensorial que excede o sentido da visão) dos corpos que se relacionam tanto através do conflito como através da convivilidade.

Esta reflexão sobre o trabalho da imagens, e a forma como elas possibilitam e ao mesmo tempo confinam a transmissão da memória e da violência, subjaz ao projecto artístico de Aimée Zito Lema. Iniciado com um período de residência na rua das gaivotas6 em Lisboa, este projecto investiga as tensões e camadas da memória do 25 de Abril em Portugal, procurando dar a ver os processos vernaculares através dos quais a memória deste evento é mediada e transmitida ao longo das gerações.

Esta investigação foi desenvolvida em conjunto com adolescentes de dois grupos de teatro da área metropolitana de Lisboa, o Grupo de Teatro da Escola Secundária Filipa de Lencastre e o Grupo de Teatro do Oprimido (GTO), que trabalharam diferentes modos de transmissão da memória por via do corpo e em particular da voz. Com o primeiro grupo, no âmbito de um workshop na Escola Secundária Filipa de Lencastre, Aimée Zito Lema incitou os adolescentes, que pouco conhecimento tinham do 25 de Abril, a perguntarem aos pais e avós que memórias têm deste evento e, posteriormente, a encenarem essas memórias transmitidas por via familiar. Alguns dos pais dos adolescentes não experienciaram o 25 de Abril directamente, transmitindo aos filhos histórias ouvidas através de gerações anteriores, pelo que a encenação dessas memórias pelos adolescentes ocorre já em terceira mão, num processo que dá a ver o trabalho de ficção vernacular que procura preencher as lacunas da memória social através da transmissão oral, da imaginação e da fabulação.

Já com o segundo grupo, o GTO, o exercício de Aimée Zito Lema envolveu um trabalho de pesquisa no arquivo do ACARTE, antigo Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. O exercício começou então por explorar a memória institucional deste serviço através dos materiais e das imagens do seu próprio arquivo, exploração que culminou num relacionamento corporal com essas memórias quando os adolescentes vestiram as impressões dessas imagens de arquivo, corporizando, desta forma, memórias que lhes são desconhecidas e distantes. Ensaiou-se através desta estratégia a possibilidade de transmissão de memórias através do corpo, corpo esse que devém arquivo que retém as marcas do próprio esquecimento.

Posteriormente, o grupo foi incitado a contar a história do 25 de Abril, história essa que lhes é transmitida socialmente apenas por via pedagógica. Através deste exercício, as lacunas de transmissão da memória (quer geracionais quer sociais) tornaram-se novamente visíveis, dando a ver a memória como um fenómeno que produz efeitos diferenciados em diversas comunidades. O trabalho com ambos os grupos revela como a mediação da memória é um processo performativo e transformador que age sempre sobre o passado que é transmitido, passado esse que se perfila no presente através de diferentes formas e estratégias consoante os contextos de enunciação.

As serigrafias presentes neste ensaio visual articulam visualmente estes processos de transmissão, num trabalho crítico sobre o próprio funcionamento das imagens. Na exposição que inaugurará em junho, as serigrafias partilharão o espaço expositivo com uma vídeo-instalação que evoca este trabalho performativo, vídeo este que, evocando o conto de Lispector, contém exactamente 13 planos.

Nas serigrafias de Aimée Zito Lema, estabelece-se um paralelo entre o processo fotográfico e o processo mnemónico que partilham a noção de latência. Etimologicamente, latente refere-se a algo escondido ou secreto. Do latim latentem (nominativo latens), o particípio presente de latere significa “estar escondido, ocultar-se, encobrir-se”, que por sua vez se relaciona com o grego lethe (esquecimento, adormecimento) e lethargos (letárgico, esquecido, adormecido). A noção de latência encontra-se, pois, numa zona de transição entre o visível e o invisível, a memória e o esquecimento. No processo fotográfico, latência refere-se ao período em que uma imagem se encontra prestes a revelar-se sem ainda estar completamente visível. De modo semelhante, no campo da psicanálise, o “período de latência” é entendido como uma fase em que desejos se formam sem no entanto se manifestarem ou concretizarem, tornando-se visíveis por via de estratégias oblíquas como a repressão ou a inventividade. As serigrafias de Zito Lema prestam-se exemplarmente ao jogo de tensões e camadas que circundam os processos de transmissão de memória, que ocorrem necessariamente através de lacunas e fissuras que contêm experiências que nunca chegaram a ser vistas ou articuladas, mas que continuam armazenadas. 

A memória, enquanto instância do passado que se revela no momento presente, contém em si esta relação tensional. Por um lado, pode-se afirmar que na memória exige sempre um convívio de temporalidades  que constituiu uma nova imagem em que se sobrepõem tempos diferentes. Por outro lado, a memória é também lugar de conflito entre o que foi e o que é, entre a recordação e o esquecimento. Articulando esta tensão, as serigrafias de Zito Lema podem ser entendidas como imagens dialécticas, no sentido que lhe atribui Walter Benjamin: o território imagético em que um momento anterior se insinua  no agora e, só aí, nesse momento subjectivo. A existência de uma imagem do passado não pressupõe conhecer esse passado tal como ele efectivamente aconteceu, mas apropriar-se das memórias quando elas brilham num momento de perigo2. Esse momento de perigo é aquele em que a imagem vinda do passado se torna visível para depois desaparecer para sempre. Nas serigrafias de Zito Lema, contudo, esta imagem do passado nunca chega totalmente a torna-se visível, mas também nunca desaparece, permanecendo registada e suspensa em latência. É através deste processo que a temporalidade complexa das imagens e da memória, e da violência que lhe é inerente, persiste enquanto processo inacabado. É apenas nesta suspensão que poderá agir sobre o presente.

 

Judith Butler (2004), Precarious Life. The Power of Mourning and Violence, London: Verso. Alexander G. Weheliye (2014), Habeas Viscus: Racializing Assemblages, Biopolitics, and Black Feminist Theories of the  Human, Durham: Duke University Press.

Benjamin, Walter (1999a), Illuminations, London: Pimplico.

 

Curadoria e texto: Ana Cachola, Daniela Agostinho, Luísa Santos

 

13 shots, resultante de um período de residência de investigação da artista na Rua das Gaivotas 6, é um dos oito capítulos da exposição criada no contexto do projeto 4Cs: From Conflict to Conviviality through Creativity and Culture, um projeto de cooperação entre oito instituições artísticas e culturais (Universidade Católica Portuguesa; Tensta Konsthall; SAVVY Contemporary; Royal College of Art; Fundació Antoni Tàpies; Vilnius Academy of Arts; Museet for Samtidskunst; e ENSAD), coordenado pela Universidade Católica e cofinanciado pelo programa Europa Criativa da União Europeia. O projeto conta ainda com vários parceiros locais associados como o Museu Calouste Gulbenkian, o Culture+Conflict e o MIMA.

 

https://contemporanea.pt/edicoes/06-2018/13-shots-imagem-latencia-performatividade

 

An English adaptation of this text was published in "Conviviality and Institutional" and it is available here.